Texto por: Jaqueline D. Krehnke | Fotografia: Matheus e Manoela Sanches
A Ficção tem um papel muito importante em nossas vidas, nos envolve profundamente, desenvolve o nosso imaginário, nos dá linguagem para escrever e pode até mesmo afetar o nosso processo de formação. C. S. Lewis afirma que uma boa história tem a beleza de fascinar um menino de 10 anos a um homem de 50 anos.
A Marvel, por exemplo, está aí para mostrar o que é um enredo bem feito. Ficamos impressionados com seus personagens imponentes que têm a capacidade de voar, voltar no tempo, curar pessoas, salvar a humanidade, etc. Todas as histórias são muito bem orquestradas e quando o último filme dos "Vingadores" é lançado, as crianças insistem pelo boneco do novo personagem que apareceu na obra.
Por mais que ao terminarmos de ler um livro, suspirando com a incrível sensação de termos imergido em um outro universo, ou quando voltamos do cinema com a adrenalina lá em cima, o peito estufado e a sensação de que iremos mudar o mundo, uma verdade permanece: tudo aquilo não passa de uma ficção. Há também as histórias baseadas em fatos reais, ou as experiências vividas por pessoas que conhecemos, que nos inspiram e encorajam, mas não podem afetar o nosso estado e mudar o curso de nossas vidas.
Quero falar sobre uma história imensamente maior, a narrativa de um Deus-Homem, que invadiu tempo e espaço para nos resgatar. Não é um conto mitológico ou imaginário, e por isso mesmo, não podemos reduzir o protagonista desta história ao papel de ser apenas um herói, pois Ele significa e é muito mais do que isso.
No Antigo Testamento, os “heróis da fé” nos encorajam com histórias reais, mas é importante sabermos que todas elas são uma sombra desse Deus-Homem — aquele que "viria esmagar a cabeça da serpente” (Gn 3:15), também "viria da semente (descendência) de Abraão e abençoaria todas as nações da terra" (Gn 12:3), que "seria um Profeta como Moisés, a quem Deus disse que devemos ouvir" (Dt 18:15), e que também "Ele teria um trono, um reino e uma dinastia ou casa — começando com o Rei Davi — que durará para sempre" (2Sm 7:16). Essas e outras profecias apontavam para o Deus-Homem. E pela fé estes homens fizeram parte da extraordinária história que afetou nossas vidas ordinárias. Homens como Abraão, que creu contra a esperança porque estava convicto da promessa que recebeu de Deus.
A HUMANIDADE DE CRISTO
Na pequena Belém — não em um reino tão, tão distante — em uma cidade real, em um dia planejado pela eternidade, acontece o evento que muda todo o curso da História, inclusive a minha e a sua história. É lá no Oriente Médio que nasce o Messias esperado, o Cristo, Jesus — que significa “Salvação".
De parto natural, em um estábulo, em meio aos animais, colocado dentro de uma manjedoura, aquele bebê era bem vindo naquela bela noite. Um verdadeiro exército de anjos apareceu no céu bradando: "Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem” (Lc 2:14). Aquele que é onisciente, onipotente, onipresente, o alfa e o ômega, o princípio e o fim, o dono do tempo, o criador e sustentador de todos os seres humanos e de todas as coisas, Ele se fez carne. Você consegue compreender isso?
Jesus é uma pessoa, nasce como você e eu. Ele assume a natureza humana, e agora é Emanuel, o Deus Conosco. Aquele que estava exaltado abraça a humilhação ao tornar-se gente. Aqui fica mais evidente para nós o mistério da Trindade: da exaltação à humilhação, Deus Filho já existia com Deus Pai. Ele, que desde o princípio "era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1:1). Mas deixa a Sua glória para tornar-se o menor, “que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus. Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens” (Fp 2:6-7).
Sabemos que a cruz é o ápice do sofrimento de Cristo, mas a sua dor começou no dia da encarnação, quando se assemelhou a nós.
C. S. Lewis nos ajuda a compreender um pouco melhor esse tamanho mistério quando diz: “O Ser eterno, que conhece de tudo e que criou todo o universo, não só se tornou homem, mas (antes disso) se tornou um bebê, e, antes disso, um feto dentro do corpo de uma mulher. Se você quiser imaginar algo parecido, pense em como se sentiria caso se transformasse em uma lesma ou um caranguejo”.
Para ver a Deus, você precisa olhar para o bebê Jesus. Agora olhe para as unhas desse bebê, você não vai encontrar nada mais sensível do que aquelas mãos pequeninas. Nunca em nosso imaginário poderíamos considerar que um dia Deus choraria de fome e que suas fraldas precisariam ser trocadas. Que Ele ficava cansado e precisava dormir. Provavelmente se machucou ao brincar com seus amigos, e sua mãe precisou fazer um curativo. Ele tinha as limitações de um corpo humano, sentia fraqueza.
Ele tinha alma e emoções humanas, chorou com a morte do seu amigo Lázaro, precisou de ajuda para carregar a cruz. O Deus-Homem se rebaixa à forma mais humilhante, assume uma vida ordinária para então trabalhar de forma bela e pedagógica em nossas vidas. Trago aqui as palavras de Michael Horton para compreendermos bem esta realidade: "Assim como não esperaríamos encontrar o Criador do universo numa manjedoura de um estábulo […] quanto mais pendurado, sangrento, numa cruz romana […] isso não pode estar certo, arrazoamos. Precisamos de sinais e maravilhas para saber que Deus está conosco. Mas é somente porque Deus prometeu encontrar-nos nos lugares humildes e simples, entregar a sua herança, que nós nos contentamos em recebê-lo dessas formas”.
POR QUE DEUS PRECISAVA SER HUMANO?
Resumidamente tudo começa lá em Gênesis, na Criação. O propósito de Deus era que homem e mulher vivessem em perfeita harmonia, mas o primeiro Adão — que representa a Humanidade — desobedece e peca, causando então a Queda. Se um homem trouxe o pecado ao mundo, Deus precisava enviar o último Adão para resolver essa tragédia. Um representante sem pecado algum, só Ele poderia nos oferecer eterna Redenção. Aqui vemos a entrega mais sublime: Deus nos amou tanto ao ponto de nos dar o seu melhor, Ele envia Cristo em forma humana, isento de pecados, para morrer por causa dos nossos pecados e então nos justificar e resgatar nosso estado original:
“Pois ele nos resgatou do domínio das trevas e nos transportou para o Reino do seu Filho amado, em quem temos a redenção, a saber, o perdão dos pecados” (Cl 1:13-14).
Nós estávamos condenados à morte eterna, mas, como diz C. S. Lewis: “o Filho de Deus se fez homem para que os homens pudessem tornar-se filhos de Deus”. Pela Graça de Deus, Ele nos torna aceitáveis através de si mesmo, na figura do Filho Jesus.
Então Deus escolhe Maria, a quem chama de “serva”. Ela era da linhagem de Davi e por isso Cristo é um legítimo descendente do rei a quem Deus tinha feito promessas. É importante compreendermos que Maria é apenas mãe da natureza humana de Jesus, ela não é a “mãe de Deus” porque Deus não poderia ser gerado. Maria foi uma serva comum, obediente à voz de Deus. Além de seu filho Jesus, Maria teve também outros filhos com José. Augustus Nicodemus esclarece que "o Espírito de Deus veio sobre Maria, pois se Ele viesse de José, Cristo nasceria como você e eu, cheios de pecado, inclinados ao mal, carregando a culpa original”.
Podemos entender melhor aqui a doutrina do "nascimento virginal", que de acordo com Wayne Grudem opera em três áreas:
O nascimento virginal mostra que a salvação em última análise deve vir do Senhor.
O nascimento virginal possibilitou a união da plena divindade e da plena humanidade.
O nascimento virginal torna possível a verdadeira humanidade de Cristo sem a herança do pecado.
Na Bíblia vemos a impecabilidade de Cristo, nos mostrando que Ele foi tentado, mas não pecou: “Porque não temos sumo sacerdote que não possa se compadecer das nossas fraquezas; pelo contrário, ele foi tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb. 4:15).
Isso nos ajuda a entender que Ele era incapaz de pecar porque também tinha uma natureza divina.
Cristo não está nos mostrando um caminho de legalismo, dizendo que somos justificados pelas obras através do esforço para uma santificação que nos levaria a Deus, mas sim que, através de Seu sacrifício na Cruz, esse ser verdadeiramente humano nos justificou e Ele é o caminho para a santificação que acontece progressivamente por meio de Seu Espírito.
Nós, nesse corpo corruptível, passaremos por tentações, mas sabemos que temos Cristo, o Deus-Homem, que é o padrão de como devemos viver agora. Se por ventura cairmos, temos acesso ao dom do arrependimento, temos a garantia do perdão através de Seu sangue derramado na Cruz.
A nossa bendita esperança é de que um dia, na Consumação de todas as coisas, a nossa humanidade impecável será restaurada pois “sabemos que quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele; pois o veremos como Ele é” (1Jo 3:2).
A DIVINDADE DE CRISTO
Cristo era plenamente humano mas também era plenamente divino. Não podemos falar da Humanidade de Cristo sem compreendermos a Sua Divindade, e vice-versa. Essas duas realidades andam juntas, mas nós precisamos compreender suas diferenças. De acordo com R. C. Sproul "o importante é que façamos distinção entre a natureza divina e a natureza humana para que não as confundamos ou as mesclemos de modo que obscureçamos a realidade de uma ou de outra”.
A Bíblia é infalível e inerrante e ela deixa claro que o nome de Deus era atribuído a Cristo: "Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu, e o principado está sobre os seus ombros, e se chamará o seu nome: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte…” (Is 9:6).
Ele também é chamado de Senhor quando Maria visita Isabel: "E de onde me provém isso a mim, que venha visitar-me a mãe do meu Senhor?” (Lc 1:43). O seu discípulo João o reconhece como o Verbo, Cristo se denomina como o Eu Sou e diversas vezes como o Filho do Homem. Em Apocalipse ele é “o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o fim” e também “Filho de Deus” no sentido celestial, como aquele que faz parte da Trindade e revela plenamente o Pai. Em Colossenses vemos que "nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2:9).
O Deus-Homem possuía atributos divinos. Hernandes Dias Lopes nos diz que “Cristo era a exata expressão do ser de Deus e por isso vimos a sua glória, glória que compreende todos os atributos de Deus. Ele era o resplendor da glória de Deus”. Cristo ficou escondido por muito tempo, temos pouquíssimos relatos desses trinta anos, mas através do que sabemos de seus três anos de ministério podemos ver por exemplo a Sua Onipotência quando Ele acalma a tempestade, sua Onisciência quando vê Natanael sob a Figueira, a Sua Onipresença ao afirmar que Ele estaria presente onde dois ou três se reunissem no nome dele, além de outros atributos como: imutabilidade, amor, sabedoria, verdade, imortalidade, santidade e eternidade.
Mesmo a Escritura sendo clara sobre essa Doutrina, Wayne Grudem nos auxilia destacando três pontos importantes da Divindade de Cristo:
Só alguém que fosse Deus infinito poderia arcar com toda a pena de todos os pecados de todos os que cressem nele.
A Salvação vem do Senhor. Nenhum ser humano ou criatura conseguiria salvar o homem. Somente Deus.
Só alguém que fosse plenamente Deus poderia ser o mediador entre Deus e o homem (1Tm 2:5).
PLENAMENTE DEUS E HOMEM
O Concílio de Calcedônia em 451 d.C marcou a história da igreja ao refutar as principais heresias a respeito da encarnação de Cristo. Os monofisistas acreditavam que Cristo tinha apenas uma natureza. Os docetistas argumentavam que Cristo era totalmente divino, sem humanidade. O Nestorianismo dizia que Cristo deveria ter duas personalidades distintas já que Ele tem duas naturezas.
Então o Concílio de Calcedônia bateu o martelo respondendo perguntas como: “Jesus poderia ser plenamente Deus e plenamente homem, e ainda assim uma pessoa? Como isso poderia acontecer?”, ”Ele seria cinquenta por cento Deus e cinquenta por cento Homem?”. A resposta é que essas duas naturezas coexistem — são simultâneas.
Cristo é cem por cento divino e cem por cento humano em uma pessoa só. A Divindade e Humanidade de Cristo são inseparáveis.
CONCLUSÃO
O Mistério da Encarnação é considerado um dos estudos mais complexos, como diz R. C. Sproul: "Ninguém jamais penetrou as profundezas de como Cristo pode ser verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”. A verdade é que essa realidade ultrapassa uma mera história, ela invade a nossa vida exatamente agora onde estamos.
Devemos estudar, nos aprofundar no assunto, mas no final das contas não é por causa do Concílio de Calcedônia que recebemos essa verdade, nós a recebemos pela fé. Em cada dia comum aqui na terra, os nossos irmãos que reconheceram Jesus como Emanuel, o Deus Conosco, não indagavam sua humanidade e divindade, eles receberam essa verdade pela fé. Aquele guarda afirmou no Calvário, após Jesus dar o seu último suspiro: “Verdadeiramente este é o filho de Deus” (Mt 27:32). Um ladrão na cruz o reconhece pela fé, o outro não. Todos estes tinham plena certeza de que quando olhavam para o Filho estavam olhando para o Pai.
Hoje não podemos ver o nosso Cristo, mas nós sabemos, temos convicção, através da obra do Espírito em nós, de que temos um representante nosso assentado à direita de Deus. Após ressuscitar, Ele subiu aos céus com um corpo glorificado e humano. Isso mesmo, aquele que atravessava paredes também foi tocado por Tomé, e os discípulos em Emaús comeram com ele.
Cristo permanece Deus-Homem eternamente e intercede por nós, chora conosco, Ele sabe exatamente o que estamos sentindo, conhece o nosso sofrimento presente e momentâneo. Esse extraordinário Deus-Homem prometeu que estaria conosco em cada dia ordinário de nossas vidas: "e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt 28:20).
Uma ficção, uma história comum, um relato real, são todas formas de nos inspirar, mas não podem nos dar uma nova vida. Podem por um momento nos transportar para um mundo imaginário, mas não podem nos transportar de um verdadeiro reino de trevas para um verdadeiro reino de luz. E é isso o que o Deus-Homem fez. Na verdade Ele não faz parte de uma história, Ele é a própria história, enredo e narrativa. Ele é autor e consumador. O Verbo, que estava com Deus, se humilhou no instante em que tornou-se um feto, morreu por nós, ressuscitou, ascendeu aos céus e um dia voltará pessoalmente e gloriosamente. Emanuel, Deus Conosco, habitou e habitará entre nós.
Referências:
1. LEWIS, C.S. Como Cultivar uma Vida de Leitura. São Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2020.
2. LEWIS, C.S. Cristianismo Puro e Simples. São Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2017.
3. HORTON, Michael. Simplesmente Crente: por uma vida cristà comum. São José dos Campos: Fiel, 2016.
4.NICODEMUS, Augustus. Por que Jesus Tinha que Ser Deus e Homem?, Youtube - Canal: Augustus Nicodemus Lopes Oficial, 2018.
5. GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999.
6. SPROUL, R.C. Somos Todos Teólogos: Uma introdução à Teologia Sistemática. São José dos Cámpos: Fiel, 2017.
7. DIAS LOPES, Hernandes. A Divindade e a Humanidade de Cristo. Youtube - Canal: Hernandes Dias Lopes, 2020.
Jaqueline D. Krehnke é fundadora, editora-chefe e diretora de arte da Revista CULTIVAR & GUARDAR. Casada com Fabiano, é bacharel em Teologia, designer, fotógrafa e musicista. Faz parte da Família dos que Creem, em Curitiba, PR.
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