Texto: Arthur Martins | Fotografia: Karolina Grabowska
Nosso mundo é misturado. Tentamos cortar a parte estragada da manga para nos deliciar com a parte boa da fruta. Nossa vida não consiste em fazer isso apenas com uma manga, mas com tudo. Esse exercício de separar o bom do estragado é tão natural para nós que nem notamos o quanto isso acontece.
Se eu vou me servir em um restaurante e vejo dois pedaços de carne, um com pedaço de gordura maior do que a própria carne, naturalmente, escolho o outro pedaço (pelo menos eu espero que você faça isso também).
Ou então, se você faz uma viagem para um país que sempre sonhou, pelo menos durante o trajeto, vai se esforçar para não ficar pensando em tudo o que você deixou de fazer ou o que terá que realizar na volta para casa. Procuramos separar os bons pensamentos dos "podres".
Da mesma maneira, ao escutar uma palestra, uma aula, uma pregação, ou durante a leitura de um livro, você anota as falas que considera esclarecedoras, grifa as frases que julga serem boas. Se, porém, o palestrante ou autor afirmou algo que lhe pareceu absurdo, você ignora, mas por uma porção de beleza encontrada, você não se levanta no meio da palestra e termina de ler o livro (terminar livros é para os fortes).
Chamamos isso de discernimento. Sensibilidade e critério para “examinar tudo e reter apenas o que é bom” (1Tessalonicenses 5:21). Todos os seres humanos funcionam dessa maneira. As pessoas nem pensam, elas simplesmente existem assim. O que muda entre elas:
(a) grau de sensibilidade para perceber como algo é bom e belo (como a parte rosada de uma goiaba e não a branca, ou uma pintura de Rembrandt e não um desenho feito por mim);
(b) critérios escolhidos (se consideram a cor mais importante que o sabor, ou o preço mais importante que a qualidade).
Esse discernimento é exercitado por nós o tempo todo. Quando decidimos continuar dirigindo pela rua e não pela calçada, com os olhos abertos e não fechados… A maioria das decisões nos são naturais ou como “segunda natureza”, aprendidos ao longo do tempo. Nem pensamos neles. Para o nosso amadurecimento, porém, nos é requerido ponderar sobre alguns assuntos por algum período de tempo se quisermos realmente discernir melhor.
É necessário rever nossos critérios iniciais e afiar nossa sensibilidade meditando, pensando, sentindo e orando.
Isso tudo é imprescindível, especialmente para nós cristãos, porque acreditamos que o mundo inteiro é bom. Como Paulo escreveu: “Pois tudo o que Deus criou é bom, e, nada deve ser rejeitado, se puder ser recebido com ações de graças”. (1Timóteo 4:4). A bondade da criação é uma verdade de fé para o seguidor de Jesus. O cosmos inteiro é bom. “Então Deus contemplou toda a sua criação, e eis que tudo era muito bom”. (Gênesis 1:31).
Eu sei que você não vai discordar da Bíblia, mas certamente possui uma experiência diferente da de Deus quando vê o mundo e alguma dificuldade para concordar que tudo seja bom. Em parte, isso se deve ao nosso "analfabetismo contemplativo". Se você está lendo este texto ao invés de ouvir alguém lê-lo, você usa estes olhos também para ver tudo à sua volta. Você vê, mas não necessariamente contempla. Seus olhos passam pelas coisas como quem “usa a visão” a maior parte do tempo, mas Deus não apenas vê, Ele conhece tudo o que vê. Deus enxerga dentro de tudo. Ele vê a estrutura, a essência das coisas.
E a essência das coisas é Sua Palavra, que origina tudo que existe.
Algo que também nos impede de ter a mesma conclusão imediata que a divina quando olhamos para o mundo inteiro, é a “parte podre das coisas”. No mundo bom que Deus criou, notamos o fluxo da vida, a criatividade humana, a cultura desenvolvida por hábitos e conceitos que se modificam, a inevitabilidade da história — que é uma consequência dos processos culturais sujeitos ao tempo — a estética da realidade, a lógica, o cheiro, a textura e tudo mais que constitui a realidade. Tudo isso é lindo, tirando a parte podre de cada coisa. Tudo é bom, mas tem uma parte estragada. É disso que Paulo falou quando escreveu “na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.” (Romanos 8:21).
O mundo bom está sujeito à corrupção. Partes do mundo se deterioram. A esperança cristã é que Deus liberte o mundo de uma vez por todas dessa “ferrugem" que aparece em toda criatura. Gosto da tradução NVT do Salmo 16:10, quando afirma que Deus “não deixará que o corpo do santo apodreça no túmulo.” Em Jesus há ressurreição! Pela cruz, foi inaugurado o Reino de Deus na Terra, que é o fim da decomposição da boa criação de Deus, um efeito do pecado.
O sacrifício de Jesus interrompe os efeitos do pecado, operando o poder da ressurreição desde o seu corpo humano até o espírito dos crentes, fazendo-os ressuscitar e parar de putrefazer. Essa operação da ressurreição acontecerá em toda a criação. Ressurreição é recriação. Mas apenas terá fim no retorno aparente do Ressurreto.
Enquanto andamos neste mundo bom e bonito — misturado com maldade e podridão — para se viver bem, é necessário discernimento. Alguns tendem a ver só a feiura, e outros só a beleza. Como cristãos, somos leais ao Evangelho de Jesus.
O Evangelho é o que Deus fez em Jesus Cristo, como Ele reconciliou consigo o mundo todo.
Não podemos deixar de denunciar a presença do pecado e chamar as pessoas ao arrependimento pela fé em Jesus. Não podemos perder a beleza de um texto, de um filme, de um quadro e de uma dança em detrimento do moralismo. Meus pais sempre procuraram me ensinar sobre a beleza da vida comum, da boa música, do bom texto, do bom filme, das paisagens, da cidade, da culinária…
Ao olharmos para como Jesus andou neste mundo misturado, vamos nos apaixonar por ele. Nosso Mestre apresenta com beleza incomparável a feiura horrenda do pecado humano, fala com temor e mansidão sobre a ira divina, descreve com amor os corações cheios de ódio, serve humildemente a tiranos arrogantes da moral e da razão.
O contraste do estilo de Jesus destaca a parte estragada e a beleza da vida santificada. É o estilo de Jesus que vem antes do conteúdo do discurso dele... e o estilo já é o próprio conteúdo cativante! Como Jesus consegue nos fazer encontrar Deus até quando o assunto é ruim?! Impossível não amá-lo no mundo misturado quando seu discernimento é tão fascinante!
Ao considerarmos a beleza do homem, e ao mesmo tempo, sua feiura, estamos afirmando como a Glória de Deus ainda brilha numa criação caída. “O que descobri é tão somente isto: que Deus fez o ser humano reto, mas ele se meteu em muitos problemas.” (Eclesiastes 7:29). Com isso, não quero, nem o texto Bíblico quer dizer que, o homem nasce sem pecado, mas que o pecado não é a aniquilação completa da beleza da humanidade, ou da imago Dei, mas apenas a corrupção desta.
Ainda há beleza no homem pecador. É preciso discernimento pra notar isso. Não há beleza em seu pecado, mas em sua humanidade.
O pecado, de fato, corrompeu toda a capacidade humana de agradar a Deus e de viver no sentido correto. O pecado é a aniquilação absoluta da obediência a Deus, e isso atrai a ira divina sobre o homem, que acarreta na destruição até da porção bela e boa que nele restou. De fato, toda a virtude humana será lançada ao fogo se o homem pecador não morrer e renascer pela fé em Cristo. Mas inegável é que, embora o homem natural tenha seu coração corrompido pela apostasia, ele continua sendo a imagem da bondade da criação, enquanto vive representando a sabedoria divina de ter criado um ser tão inteligente, belo, poderoso, alegre, criativo, competente, imbuído da paternidade e maternidade, compaixão para se sacrificar em lugar de outro e criativo para elaborar projetos incrivelmente inovadores para a vida.
O homem obedece à ordem divina de sujeitar tudo a si mesmo e cultivar a criação, mesmo que o faça movido por ganância e idolatria. E nosso olhar sobre o homem só será fiel se identificarmos tanto sua bondade quanto sua maldade, aprendendo, como Jesus, a descrever com beleza esse contraste que certamente ressalta sua feiura diante da santidade divina.
O Evangelho que pregamos só será fiel se destacar o belo e o feio da vida, sem ser pessimista demais, nem otimista demais.
Ah, como precisamos ver o mundo de Deus como Jesus!
Arthur Martins é pastor na República - Igreja Presbiteriana em Curitiba, PR. É casado com Marô Vasques.
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