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Amizade Além da Utilidade

Texto por: Gabriela Marold | Fotografia: Daiane Antunes



Três quartos das pessoas que você conhecerá estão famintas, sedentas por simpatia. Ofereça isso a elas e você será amado.”1 Essa é uma das frases de impacto de um dos maiores best-sellers do mundo escrito em 1936: "Como fazer amigos e influenciar pessoas", de Dale Carnegie.

Confesso que este foi um daqueles livros que só comecei a ler por recomendação de um amigo que dificilmente erra nas indicações. Ler a palavra "autoajuda" já na capa da obra me fez torcer o nariz, mas preciso admitir que o livro é envolvente, as histórias são boas e é impossível não se identificar com centenas delas.


Mas o que fez — e ainda faz — mais de quinze milhões de pessoas buscar informações neste livro de autoajuda sobre algo que deveria ser tão simples e porque não dizer, instintivo? Fazer e cultivar amigos é um desafio. As relações humanas são desafiadoras. O autor disse que, por anos a fio, procurou um manual prático e eficiente sobre essas relações, e como não encontrou, decidiu escrever ele mesmo um livro. Carnegie queria que cada leitor entendesse que "popularidade, felicidade e senso de valor dependiam, em grande medida, da habilidade no trato com as pessoas"2.

Convenhamos que, conforme algumas dicas do livro, ser um indivíduo afetuoso nas relações, não economizar nos sorrisos, chamar o outro pelo nome, interessar-se pela história do próximo (ao invés de falar apenas de si mesmo) inegavelmente surtirá efeito positivo. Mas será que apenas um comportamento premeditado será o suficiente para o nascer e o cultivar de uma boa amizade?


O próprio autor conclui que mesmo com métodos para boas relações, no fim, as pessoas mostram que não são criaturas lógicas, mas "seres suscetíveis e preconceituosos, motivados pelo orgulho e pela vaidade"3. Até mesmo o grande C. S. Lewis chegou à conclusão semelhante de que, na verdade, há um declínio crescente nas relações de amizade: “para os antigos, a amizade parecia ser o mais feliz e o mais completamente humano de todos os amores, a coroa da vida e a escola da virtude. Em comparação, o mundo moderno a ignora"4.


Amizade, ou a falta dela, é um tema antigo, de grande abrangência e estudado por cristãos e não cristãos ao longo dos tempos. O Ministério Fiel, em uma de suas conferências, apresentou o tema “O declínio da amizade e a cultura do cancelamento5 proferida pelo pastor, teólogo e filósofo Jonas Madureira. Em síntese, o pastor discorreu sobre como a herança da visão greco-romana influenciou o pensamento ocidental a respeito da amizade.


Do pensamento greco-romano X doutrina cristã


A Amizade, no cenário grego, existia com base em três aspectos: utilitarismo, afetuosidade e virtuosidade. A amizade verdadeira fundamentava-se nos prazeres ou nas afinidades. De acordo com o ideal grego, poucas pessoas poderiam ter acesso à verdadeira amizade, o que a tornava algo raro. Já no cenário romano, por sua vez, exemplificado nas cartas do filósofo Sêneca, ficava evidente que o ideal das relações humanas também estaria centrado na virtuosidade das pessoas, na confiança plena entre elas. Nos dois contextos, a amizade apenas iria frutificar se as pessoas envolvidas fossem plenas, prudentes, justas, corajosas, enfim, absolutamente virtuosas!


Se, para os gregos e romanos, a estrada que levava a uma amizade legítima representava uma via de mão dupla, alicerçada na virtuosidade, o cristianismo trouxe uma base conceitual bem diferente, fundamentada unicamente em uma palavra: o amor. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos” (Jo 15:13).


Cristo deixou claro que a amizade verdadeira não dependeria da virtuosidade, da utilidade ou da afinidade entre as partes, mas deveria estar ancorada no amor.

E Ele não somente ensinou por palavra, demostrando em sua própria vida que o amor seria o fundamento. Até mesmo um traidor poderia ser amado e chamado de amigo, após o beijo da traição (Mt 26:50).



A Contramão


O Evangelho nos faz enxergar que todos nós somos falhos e carecemos de um Salvador. O pecado nos afetou de tal forma que não conseguimos, por melhores que sejam as nossas intenções, vivenciar amizades com altruísmo genuíno e virtuosidade abnegada.


Precisamos de muita graça para unirmos um ser imperfeito com outro ser imperfeito, lutando para serem aquilo que Cristo deseja — exercendo amor sacrificial e perdão.

O ideal cristão de amizade, nas palavras de Madureira é: “Jesus é o maior exemplo de amizade não baseada em utilidade ou afinidade, dando sua vida por homens maus, e não por homens equilibrados e virtuosos"6.

O pastor e teólogo Matthew Henry em seu comentário bíblico, referiu-se ao amor doador de Cristo por seus amigos da seguinte forma: “Cristo amou seus discípulos, pois deu sua vida por eles. Este é o amor com o qual Ele nos amou. Ele é o nosso antipsychos— fiador, corpo por corpo, vida por vida, embora conhecesse nossa insolvência, e previsse o quanto este compromisso lhe custaria”7.

O Senhor nos inspira a sermos amigos fiéis, verdadeiros, justos, porém conscientes da corrupção da natureza humana. De acordo com a ótica divina, nossas relações de amizade não devem estar fundamentadas apenas no prazer ou na utilidade que alguém pode nos proporcionar. Embora as afinidades facilitem o desenvolvimento de uma amizade, elas não devem ser o fator que a sustenta.


Sem prazer e sem utilidade


Há alguns meses, tive uma experiência nova sobre amizade que me fez valorizar e refletir ainda mais essa dádiva. Todos os membros da minha família adoeceram e a situação se agravou em dado momento, que o meu marido precisou ser levado para o hospital em decorrência da Covid, pois mais de sessenta porcento dos seus pulmões estavam comprometidos.


Ficamos angustiados, preocupados e, como se não bastasse, isolados fisicamente das outras pessoas. Esse isolamento foi apenas físico, pois minha família recebeu muito afeto, mesmo que à distância. Passamos por um momento de grande fragilidade, vulnerabilidade, incertezas, sem podermos oferecer nada diferente de lágrimas, pesar e preocupação, entretanto, recebemos de amigos e irmãos muito carinho e cuidado. Percebi que a minha família valia mais do que as risadas, compartilhamento de momentos alegres ou do que qualquer serviço que pudéssemos prestar. Semanas de dor trouxeram mensagens de encorajamento, orações, pratos de comida deixados na porta de casa e até mesmo, sem sabermos como, ajuda financeira.


Amigos foram o bálsamo no auge da calamidade.

Graças ao Senhor, pudemos experimentar a recuperação plena de toda família, mas esses dias tão difíceis nos ensinaram sobre soberania divina e sobre a amizade em um momento que não tínhamos absolutamente nada a oferecer — nem prazer e nem utilidade. Experimentamos a verdade de que “o amigo ama em todos os momentos; é um irmão na adversidade” (Pv 17:17).


O padrão cristão de amizade vai além da virtuosidade. Que busquemos ser amigos, ao invés de termos amigos. Que o Senhor nos livre de sermos aqueles que só aceitam amizades por conveniência, com base no que pode ser oferecido.


Que Ele nos ajude a confiar nas outras pessoas sabendo que poderemos até nos decepcionar, mas que mesmo assim sempre valerá o risco. O autor de um best-seller mundial sobre amizade e influência pode dizer que para sermos amados devemos oferecer e exigir simpatia a todo custo, mas o Autor da Vida, que morreu pelos seus amigos, nos convida a olharmos além de nós mesmos, sem exigências, dando da nossa própria vida, em amor, da mesma forma como Ele fez por nós. Amando como Ele nos amou.


 

*Este artigo foi publicado no Volume 03 da Revista CULTIVAR & GUARDAR


Referências citadas no texto:

1. CARNEGIE, Dale. Como fazer amigos e influenciar pessoas. Rio de Janeiro: Sextante, 2019.

2. Ibid.

3. Ibid.

4. LEWIS, C.S. Os quatro amores. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.

5. MADUREIRA, Jonas. O declínio da amizade e a cultura do cancelamento. Conferência Fiel - Youtube - Canal: Ministério Fiel, 2021.

6. Ibid.

7. HENRY, Matthew. Comentário Bíblico Novo Testamento (Mateus a João). Rio de Janeiro: CPAD, 2020.


 

Gabriela Marold é jornalista, redatora e editora de conteúdo da CULTIVAR & GUARDAR. Casada com Juliano, é mãe da Sarah e do Daniel. Faz parte da Família dos que Creem em Curitiba, PR.


*Este artigo foi publicado no Volume 03 da Revista CULTIVAR & GUARDAR.




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