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Somos Todos Poetas?

Texto por: Gláucio Zani Fotografia: Arina Krasnikova


Minha paixão mais antiga e constante é a poesia. Meu primeiro escrito, ainda menino, foi um poema; a partir desses versos infantis, a poesia foi a minha estrela fixa. Nunca deixou de me acompanhar, e quando enfrento momentos de esterilidade me consolo, entre outras coisas, lendo meus poetas favoritos.


Desde cedo o fato de escrever poemas - um ato ao mesmo tempo misterioso e cotidiano - começou a me intrigar: por quê, e para quê? Pouco depois, essa pergunta, sem deixar de ser íntima, se transformou em uma questão mais geral: Por que os homens escrevem poemas?


A poesia é conhecimento, remição, poder, abandono. Operação capaz de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos escolhidos, oração, ladainha, epifania, presença. Em seu seio todos os conflitos objetivos se resolvem e o homem finalmente toma consciência de ser mais que passagem. Já dizia Octavio Paz: “o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo e metros e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal1.


Embora a poesia não seja religião cristã, para realizar-se como poema sempre se apoia em algo externo a ela. Um poema puro seria aquele em que as palavras perderiam seus significados particulares e suas referências a isto ou aquilo, para só significar o ato de poetizar. Ao mesmo tempo, um poema que não lutasse contra a natureza das palavras, obrigando-as a ir além de si mesmas e dos seus significados relativos, um poema que não tentasse fazê-las dizer o indizível não passaria de simples manipulação verbal.


As palavras do poeta, justamente por serem palavras, são suas e são de outros. A linguagem que alimenta o poema nada mais é, afinal de contas, que história.

O poema é mediação entre uma experiência original e um conjunto de atos e experiências posteriores que só adquirem coerência e sentido com relação a essa primeira coerência que o poema consagra. O poeta sempre consagra uma experiência histórica, que pode ser pessoal, social ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Mas ao falar-nos de todos esses fatos, sentimentos, experiências e pessoas, o poeta fala de outra coisa: do que está fazendo, do que está sendo diante de nós e em nós.


Entenda, porém, que a poesia não é um juízo nem uma interpretação da existência humana e, neste ensaio, opto por uma noção mais modesta sobre o que é poesia, simplesmente como uma escrita que desperta.


O manancial do ritmo-imagem simplesmente expressa o que somos; é uma revelação de nossa condição original. Somos criaturas e temos consciência de nós mesmos porque vislumbramos o criador. Tal como a religião cristã, a poesia parte da situação humana original.


Em suma, a experiência religiosa e a experiência poética têm uma origem comum; suas expressões históricas - poemas, orações, hinos, liturgias - são, às vezes, indistinguíveis. As duas, enfim, são experiências de nossa outridade constitutiva. Talvez por isso os poetas sejam sempre os mesmos, desde o início. Dizem logo o seu máximo. Há aprimoramentos, logicamente, mas são aprimoramentos da mesma coisa. Em outras palavras, o mundo de um grande poeta é um mundo no qual o criador está presente em toda parte, e em toda parte oculto.


Por que, então, escrevemos poemas? Minha modesta sugestão é porque, em primeiro lugar, o poema não é uma forma literária, mas o ponto de encontro entre a poesia e o homem.

Ali, em pleno salto, o homem, suspenso no abismo, entre o isto e o aquilo, por um instante fulgurante é isto e aquilo, o que foi e o que será, vida e morte, num ser-se que é um pleno ser, uma plenitude presente. Ali, naquele encontro, o homem já é tudo o que queria ser, o que pode ser: rocha, ave, os outros homens e os outros seres. É imagem, casamento dos opostos, poema dizendo-se a si mesmo.


Em linhas gerais, a poesia (e também a religião cristã) não oferece nem as atrações do otimismo nem a do pessimismo. Representa a vida do universo como algo muito semelhante à vida mortal do ser humano. Como disse Shakespeare: “as histórias de nossa vida são tecidas com fios - bons e maus”2. Dito de outro modo, o ser humano é um animal poético e sendo um animal poético ele escreve poemas



Em segundo lugar, os homens escrevem poemas pois há um peso de Glória em toda a criação que não cessa em nos inquietar e indagar sobre o que temos feito com a dádiva que é a vida. Mais: pergunta se buscamos fazer de nossa humanidade tudo aquilo que tanto teorizamos. Aquele peso de Glória que nos faz despertar, ao invés de adormecer sobre os falsos ossos que, cotidianamente e pelo preço mais alto, estamos sempre comprando. Faz-se poemas pois a Glória Eterna é o nosso mais relevante desejo.


O coração disparado: qualquer coisa é a casa da poesia


A esta altura, o leitor pode muito bem estar se perguntando aonde pretendo chegar com todas essas especulações. Estamos diante de duas modestas sugestões sobre o por que o homem escreve poema. Estaria eu me dando o trabalho de tecer uma trama requintada de inútil ingenuidade?


Bem, o que estou tentando argumentar, em linhas gerais, é sobre a importância cotidiana da poesia na vida. O ato de sermos intencionais em “poetizar” o presente, em mobiliá-lo.


Temos a tendência de depositar no futuro sonhos, planos e afetos. Como uma casa mobiliada e aparentemente feliz, enquanto o presente está vazio e parece um sótão abandonado, com cheiro de passado.


Temos a tendência de entulhar no futuro objetos, pessoas, sentimentos, cristais e viagens, simplesmente por nos faltar tempo ou paciência para acomodar agora o que desejamos na casa onde a vida de hoje acontece.


Mas o presente é o coração se expandindo e pulsando, é o coração disparado, é a chuva inesperada e sem guarda-chuvas quando os pés de sapatilha de pano chegam ensopados em pleno outono; é a visita do amigo na hora do almoço, sem hora marcada, para dividir o peixe e o riso; é a alegria de poder abraçar e beijar queridos sem medo de não ser compreendido; é um brinde no meio da tarde.


Acho que falta poesia ao presente. O passado é sempre festejado por nostálgicas celebrações. O futuro está sobrecarregado de honrarias e de velharias guardadas.

Naturalmente, não estou tratando, aqui, sobre uma vida romantizada. Não é disso que se ocupa este ensaio. Haverá ocasiões em que o presente nos surpreenderá com aflições. Poetizar o presente, nestes casos, é compreender que por vezes teremos a impressão de que uma cortina grossa está caída por cima de tudo que há de interessante, reduzindo-nos apenas à sobrevivência pura e simples; mas, ainda assim, podemos e devemos confiar em Deus.


Poetizar o presente é, em linhas gerais, exercitar a confiança em um Deus que é bom e cujo amor fiel e dedicado dura para sempre.

Há que se ter coragem de abrir a porta e dizer ao entregador que traz as novidades do dia: “pode deixar aqui mesmo, moço, no meio da sala”. E é em atos como esse que a poesia habita. No encontro, no limiar, no peso de Glória da vida. Poetizar o presente, em tese, é despertar. Compreender um poema significa, em primeiro lugar, ouvi-lo. Compreender o presente significa, em primeiro lugar, ouvi-lo com os olhos e vê-lo com os ouvidos.


Tish H. Warren em Liturgia do ordinário destaca: “A nova vida em que somos batizados é vivida em dias, horas e minutos. Deus está nos formando como novas pessoas. E o lugar dessa formação são os pequenos momentos do hoje3.


No fim das contas, tudo o que existe esbarra em Deus e qualquer coisa é a casa da poesia.

Escrevemos poemas porque há um encontro. Escrevemos poemas pois a Glória Eterna é o nosso mais relevante desejo. Precisamos aprender a ter coragem de mobiliarmos o presente sem medo, poetiza-lo. Sermos fiéis a Deus. Porque Cristo foi fiel, podemos e devemos ser fiéis. É impossível saber até onde a influência de um homem fiel, gentil e cumpridor de seus deveres se estende no mundo.


Deus é poema, poeta, poesia e habita no meio de nós. Sua Graça nos basta.


[...] Meu coração está disposto, ó Deus, meu coração está livre do medo: quero cantar e entoar louvores. Desperta, ó minha alma! Harpa e saltério, despertai! Quero despertar a aurora. Graças te darei, Senhor, entre as nações te cantarei louvores…

(Salmo 57: 7-9)



 

Referências usadas no texto:

  1. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

  2. Frase da peça de Shakespeare: All’s Well that Ends Well [Bem está o que bem acaba], Ato IV, Cena 3 [N.E]

  3. WARREN, H. Tish. Liturgia do ordinário. Tradução de Guilherme Cordeiro Pires. São Paulo: Thomas Nelson Brasil; Pilgrim Edição, 2021.

 

Gláucio Zani é discípulo; Bacharel em Letras: Tecnologias de Edição. Mestrando e Pesquisador em Estudos de Linguagens: Literatura Brasileira e crítica literária no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Casado com Vanessa Belmonte Zani. Membro da Igreja Esperança em Belo Horizonte, MG.

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