Texto por: Lucas Gonçalves Fotografia: Gustavo Leighton e Daniel Costa
O Bem x Mal
Agostinho de Hipona, em sua peregrinação até Deus, se deparou com uma doutrina extremamente perigosa e herética, ainda que charmosa e atraente à mente humana, o maniqueísmo, fundado por Manés no terceiro século da Era Cristã. Colocando seu ensino de modo simples, o maniqueísmo, misturando cristianismo e outras religiões asiáticas, defendia que toda a nossa realidade existiria no conflito entre duas substâncias independentes e opostas, a saber, o Bem, divino e espiritual, e o Mal, diabólico e material.
Nesta base, o maniqueísmo se tornou uma proposta interessante àqueles que buscavam uma resposta para o problema do mal, sem, à primeira vista, subtrair a dignidade de Deus. Qual seria a origem das mazelas que frequentemente nos assolam? Bem, para esta doutrina, elas simplesmente se desdobrariam da substância Má, que é oposta ao Bem e militante contra ele. A salvação, portanto, viria a ser uma superação desta matéria má, uma abstenção dela.
Este ensino é oposto à doutrina cristã em muitos pontos, como veremos mais à frente; todavia, mesmo que Agostinho tenha suplantado a sua fase maniqueísta, muitas pessoas, que se assentam nos bancos de nossas igrejas, ainda estão acorrentadas a ela.
Isso fica bastante evidente ao observarmos a nossa recém, e ainda bastante viva, experiência política, bem como os posicionamentos presentes nas falas e posturas de alguns conhecidos.
Eu gostaria de conversar, em tom pastoral e amoroso, um pouco mais com você sobre isso. Tenho plena consciência que “política” e “religião” são assuntos muito delicados em nossos dias; porém, creio que há duas coisas indescritivelmente importantes em risco, caso evitemos este elefante branco no meio de nossos salões. Me refiro a uma dificuldade em nossa peregrinação cristã — repare, eu disse “dificuldade” e não “impossibilidade" —, bem como em nosso testemunho público acerca do Reino de Deus.
Um olhar singelo para o contexto geral
Sendo bastante honesto, eu não sei explicar cientificamente o que sustenta o fenômeno que descreverei a seguir. Talvez tenha sido uma expectativa incontrolada por uma solução definitiva para um antigo problema evidente; talvez seja uma questão de identidade de grupo; talvez sejam afetos manipulados por uma narrativa convincente, que encontrou um solo fértil em nossos corações; ou, talvez, seja tudo isso somado a um punhado de outras coisas inimaginadas... o fato é que nas eleições presidenciais de 2018 e 2022, com uma ênfase desproporcional à segunda, uma polarização política, com um caricato ar apocalíptico, se instaurou em nosso meio.
Quantas famílias não foram divididas, e quantos laços de amizade não foram rompidos, por conta de leituras e expectativas políticas?
Quantos conhecidos não foram hostilizados em ambiente eclesiástico por conta de suas percepções? Quantos também não foram os agressores? Enquanto escrevo este texto, me vem à memória dois tristes casos, que realmente me fizeram chorar de tristeza ao tomar conhecimento deles, e eu não duvido que você também tenha a mente pipocando com algumas tristes histórias próximas a você.
Atente-se, a questão não se dá, a princípio, em nossos posicionamentos e preferências político-ideológicas. A política, como ensinou Abraham Kuyper — importantíssimo teólogo e estadista holandês do século XIX-XX —, é um presente divino, que visa nos auxiliar a organizar a nossa vida em comunidade, sendo uma das ferramentas pelas quais podemos continuar cumprindo a vocação feita em Gênesis 2.15: “O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”.
Qual é a raiz do problema?
Deste modo, o problema não se sustenta no simples fato de termos posicionamentos e preferências político-ideológico. Porém, creio que os efeitos de uma abordagem extremada desses elementos possa ser uma camada do fundamento dessa crise que experimentamos.
Uma camada mais profunda, ao meu ver, é o abandono de duas doutrinas cristãs extremamente caras, a doutrina da Queda e da Graça Comum que, quando esquecidas, abrem espaço para uma raiz maniqueísta e revelam a terceira camada fundamental do problema, a incredulidade em Deus.
Espero conseguir, de modo claro e pastoral, passar por cada uma dessas camadas na continuação dessa reflexão e, mais ainda, espero que o Espírito Santo nos conduza ao arrependimento, à confissão e à transformação. Que a graça, tão custosa para Deus, nos instrumentalize a superar esse contexto, a experimentarmos de sua sólida esperança e a exalarmos o bom perfume de Cristo.
Somos todos marcados pelo pecado
A doutrina da Queda, descrita em Gênesis 3 e em diversas outras passagens bíblicas, nos ensina que ao declarar a sua independência a Deus, a humanidade pavimentou o caminho para que a morte e as suas odiosas amigas fizessem morada em nosso mundo. Em seu desejo de usurpar o Trono Cósmico, a humanidade corrompeu todas as coisas. Não existe um único elemento criado que não tenha sido sacudido pelas ondas do nosso pecado e que, por conta disso, não distorça a imagem e a glória de Deus.
Isso quer dizer, e possivelmente será muito difícil para alguns de nós reconhecer tal verdade, que inclusive as nossas próprias preferências político-ideológicas, e não apenas as dos que discordam de nós, possuem efeitos da Queda. Pare para pensar um pouco nisso... Não faz diferença se você possui inclinações políticas, segundo os termos populares no atual contexto brasileiro, à direita ou à esquerda, se você tem preferências conservadoras ou progressistas.
O seu espectro político está preso à realidade cósmica pós Gênesis 3? Então ele também está marcado à ferro e fogo pela Queda e também ecoa as suas distorções.
Também há bondade em todos nós
Por outro lado, não podemos negligenciar a segunda doutrina apontada, a doutrina da Graça Comum. Por conta de seu Amor Aliançado, comprometido em criar um mundo perfeito onde um povo perfeito poderia desfrutar de relacionamentos perfeitos, Deus restringe os efeitos da Queda e promove a possibilidade do bem, da verdade e da beleza. Não existe um único elemento em todo o cosmos que, apesar da Queda, não contenha em si reminiscências da glória divina.
Essa doutrina se torna um alívio quando nos olhamos no espelho, certo? “Apesar dos problemas do meu espectro político, ele ecoa parte da bondade de Deus...”.
Pois bem, esse fato também é real para o seu oposto político. Novamente, neste caso, não faz muita diferença preferirmos nos posicionarmos à esquerda ou à direita, como progressistas ou conservadores. Se nos encontramos pós-Gênesis 3, então, além da Queda, também estamos submersos na Graça Comum: ainda que absolutamente tudo ecoe as distorções do pecado, absolutamente tudo também ecoa elementos da bondade divina.
Não é sobre ficar em cima do muro
Infelizmente, eu imagino que algumas pessoas possam ler tudo isso e imaginar que estou argumentando a favor de uma isenção pública. Não creio nisso. Como diria C.S. Lewis, os cristãos que mais olharam para os céus foram os que mais promoveram o bem na terra. Considerar a doutrina da Queda e da Graça Comum não nos promove a negligência ou algo parecido; ao contrário, nos convoca à responsabilidade e ao compromisso com o Reino.
Ao considerarmos ambas as doutrinas, somos chamados a, pelo Evangelho, avaliarmos criteriosamente os elementos de verdade e de mentira, promovendo um e abafando o outro, que são obrigatoriamente presentes tanto em nossas preferências quanto em nossos desafetos — ainda que em proporções distintas. Elas nos conduzem a nos posicionarmos em algo superior, na Rocha Inabalável, Cristo. Ambas as doutrinas balizam as nossas esperanças e nos ferramentam a refletir as realidades do Reino de Deus.
Infelizmente, muito nos privamos dessas ricas doutrinas e, deste modo, reorganizamos a nossa leitura do mundo, o separando entre coisas intrinsecamente boas e outras intrinsecamente más. Aplicando isso para o tema da nossa reflexão, ao negarmos a Queda e a Graça Comum, nós reconhecemos as nossas preferências políticas como coisas perfeitamente boas em si mesmas, enquanto relegamos à substância má os nossos “opostos”.
É sobre não ser maniqueísta
Por qual razão não chamaríamos essa postura de maniqueísmo político? Se parte do seu ensino, que tanto assustou Agostinho de Hipona, é fundamentar a realidade no conflito entre duas substâncias opostas, o Bem e o Mal, então desenvolvermos uma leitura política onde um lado do espectro é intrinsecamente bom, enquanto o outro é naturalmente mal, é uma perspectiva muito mais alinhada à essa doutrina que ao fundamento bíblico — o que é curioso e triste, já que muitos dos seus defensores, mesmo que inconscientes disso, frequentam igrejas cristãs.
Para ser menos abstrato, eu gostaria de dar apenas um exemplo, dentre tantos que seriam possíveis, que mostram essa negligência da Queda e da Graça Comum, bem como uma aproximação ao maniqueísmo. Eu presenciei inúmeras vezes irmãos mais alinhados à esquerda se referirem ao presidente vencido como “o Coiso”. Sinceramente, por pior que ele possa ter sido, eu não consigo achar justificativas para alguém que se nomeia “cristão” rebaixar uma pessoa criada à imagem e semelhança de Deus ao status de um objeto indesejado.
Houve escorregões do outro lado também. Eu vi incontáveis irmãos conservadores de direita, quando os resultados das urnas foram divulgados, questionando a Deus por qual razão Ele teria deixado “o Mal” vencer. Sinceramente, por pior que o presidente eleito possa ter sido, eu não consigo achar justificativas para alguém que se proponha a caminhar com Cristo, assim como no caso anterior, transformar uma pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus, na própria personificação do Diabo.
Quando abrimos mão das doutrinas da Queda e da Graça Comum, nós ficamos cegos para os problemas do espectro político com o qual nos identificamos, e o privamos de desenvolvimentos e possíveis melhoras, assim como nos tornamos extremamente sensíveis aos erros do espectro oposto.
Abraçando esse maniqueísmo político, nós criamos barreiras, que só trazem, de forma bastante tangível e abrangente, dor e sofrimento ao invés de cooperação e bem estar. Nos frustramos quando os nossos ídolos ruem e passamos a criar todo tipo de teorias conspiratórias — além de ações vergonhosas. Como se tudo isso, entre outras coisas, já não fosse ruim o suficiente, fazemos tudo isso em nome de um Cristo imaginário, desonrando ao Cristo bíblico e seu Reino.
Deus e sua Palavra não são suficientes?
Ainda haveria muito o que se falar, exemplos a expor e apontamentos a se ponderar. Infelizmente, não há espaço o suficiente para isso por aqui. Mas, nesse momento, eu gostaria de dar o próximo passo e descer uma camada no fundamento deste problema: a incredulidade em Deus. É obvio que há um problema e, indiscutivelmente, ele precisa ser solucionado em definitivo. Todavia, como deve ter ficado evidente, o problema não são os nossos opostos maléficos, conforme o resquício maniqueísta em nossas igrejas imagina.
O problema, conforme Agostinho viria a reconhecer no ensino cristão, é o coração humano, que se priva do bem divino — o Mal não é uma substância oposta ao Bem, mas é a privação desse Bem. Os nossos afetos, os nossos pensamentos e os nossos desejos são egoístas, desajustados, desproporcionais... são inimigos de Deus, conforme Romanos 8.7 nos diz.
Os nossos corações se afastam intencionalmente do Senhor, que é a fonte de onde jorra a bondade e, portanto, além de se privarem dessa graça, também promovem o mal ao nosso redor.
Martin Lloyd-Jones, comentando o Sermão do Monte, salienta essa questão com a sua reconhecida precisão cirúrgica. Ele nos lembra que o Reino de Deus, contrastando às expectativas judaicas e às expectativas de alguns cristãos maniqueístas, não é um Reino baseado no conflito entre “nós-bons” contra “eles- maus”, não é o Reino dos mais fortes, conquistado e imposto por alianças políticas, militares e afins.
Ao contrário, o Reino de Deus é recebido gratuitamente, quando o Espírito Santo nos sela em Jesus e aplica a sua vida em nossos corações. O Reino Eterno é composto por pessoas salvas de todas as tribos, povos e raças — inclusive, por pessoas de todo o espectro político. O Reino está no coração dos humildes de espírito, conforme Mateus 5.3, e não no coração dos revolucionários. Essas verdades não podem ser belos refrões repetidos com a nossa boca, mas excluídos de nossos corações.
Ao abraçarmos a presente polarização política, que se assenta em nosso maniqueísmo político, nos privamos da verdadeira solução, aquilo que alguns teólogos chamam de “recriação”. Não apenas isso, mas ao trilharmos este caminho, também fazemos de Deus mentiroso ou, no mínimo, estúpido. Se a solução do mundo residisse em algum espectro político, Deus teria errado ao diagnosticar o nosso coração com pecado e nos prescrever o sangue de seu Filho amado como tratamento. Bastava ele ter apoiado as nossas causas perfeitas e vencido os inimigos que elegemos em nossos corações.
Quando propagamos o maniqueísmo político, estamos afirmando com ações, mesmo que sem essa clara intenção, que Deus não é verdadeiramente o rei deste Reino. Dizemos que seus métodos são inadequados e desnecessários. Sua leitura do mundo é equivocada. Quando militamos contra os nossos opostos do espectro político, dizemos que a imagem de Deus nele não é digna o suficiente de amor. Colocando tudo isso em um termo simples, nos ajustarmos a esse maniqueísmo político revela a incredulidade no âmago de nossos corações.
Sendo assim...
Há um sério problema e ele realmente precisa ser solucionado. Todavia, quando a nossa incredulidade nos conduz ao maniqueísmo político, que se desdobra no caos da polaridade presente, nós não damos sequer um pequeno passo na direção desejada. Na verdade, catalisamos o problema em proporções inimagináveis. Experimentamos a dor da frustração e da desilusão, assim como diluímos o testemunho sobre o Reino de Paz, Alegria e Justiça que Jesus, a custo de seu próprio sangue, veio estabelecer.
No projeto redentivo de Deus, que a Bíblia nos apresenta com tanto zelo, o seu povo possui um papel fundamental. Ele é a maquete no presente que aponta para as realidades que toda a Criação experimentará no futuro; ou, como alguns missiólogos gostam de dizer, o Povo de Deus é a Comunidade Vitrine. Como descrito no quinto capítulo da Carta a Diogneto, faz parte da conduta cristã participar integralmente da vida deste mundo, o que inclui a política; porém, o fazemos com a mentalidade de cidadãos do Reino Vindouro. Nós somos a presença fiel, a Comunidade de Contraste.
Podemos e devemos nos posicionar, promover melhorias. Não há desvio algum, em nossa jornada e em nosso testemunho, esperarmos soluções pontuais para questões pontuais por meio da política — você deve se lembrar que eu citei a política como uma das ferramentas de Deus para a vocação de Gênesis 2.15, certo? O problema é quando ela se torna a nossa esperança última, o problema é quando a desarraigamos do Evangelho. Relembrando mais uma vez C.S. Lewis, as pessoas que mais fizeram por esta terra foram as que mais se mantiveram focadas e enraizadas no Céu.
Quando Agostinho percebeu que o maniqueísmo não era suficiente para dar significado para a realidade, tampouco para organizá-la, ele abriu mão deste falso ensino. Sendo exposto ao ápice da glória de Deus — Jesus dando vida abundante a pecadores de todos os tipos —, Agostinho se rendeu e confiou na obra consumada do Cristo.
Ao ler este texto, eu não espero que você se torne um isentão político, menos ainda que se alie ao outro espectro. Eu espero que você sonde o seu coração e ore em arrependimento, assim como eu mesmo tenho constantemente feito. Eu tenho a expectativa de que você volte a se alicerçar na Rocha Inabalável, crendo que aquilo que Cristo fez é suficiente, mesmo que à sua volta aparentemente haja apenas o caos, para que todos experimentemos toda a paz, a alegria e a justiça do Reino de Deus.
Eu idealizo que você se proponha a intencionalmente encontrar elementos da Queda e da Graça Comum tanto nos teus próprios posicionamentos, quantos nos posicionamentos do teu próximo. Eu idealizo que você aja com o mesmo amor generoso que recebeu de Cristo. Eu sonho que sejamos juntos reflexos vivos do Reino ao qual pertencemos e que experimentamos antecipadamente pelo Espírito Santo (Atos 1.8).
Lucas Gonçalves é formado em teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduado em plantação e revitalização de igrejas pela FATEV/CTPI. Casado com Beatriz, é seminarista na Igreja Presbiteriana em São Carlos, SP.
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