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Clichês, Evangélicos e Política

Texto por: Jorge Anderson Missional

Quanto mais superficial alguém for, mais provável será que ele ceda ao mal. Uma indicação de tal superficialidade é o uso de clichês”. (Hannah Arendt)


Para Arendt, a superficialidade do clichê é o instrumento importante para a banalidade do mal, segundo sua teoria filosófica. O clichê aqui é o pensamento pronto, sem o esforço da busca da construção lógica ancorada no fato histórico-temporal. O clichê reivindica ser um pensamento, mas, na verdade, é a negação deste; contraditoriamente, uma antítese do raciocínio e da lógica.


Isso explica o fato de Eichmann, um dos mais icônicos personagens da segunda Guerra Mundial, e que era, segundo a conclusão de Arendt, no livro que registra seu julgamento, um pai, chefe de família normal e um empregado dedicado, mas que se tornou parte de uma engrenagem do Estado nazista, capaz de matar milhões de pessoas. Ele tinha toda a sua convicção supremacista militar erigida em fragmentos de pensamentos, produzidos pela propaganda do regime nazista; isso fica nítido nas respostas que ele dava aos questionamentos no seu famoso julgamento em Jerusalém, no ano de 1961. Por fim, Eichmann tornou-se um soldado do estado, um “zumbi reflexivo”.


Este é o perigo da política de propaganda, das frases dos marqueteiros e das mensagens rápidas de redes sociais: não há mais conversas ou o pensamento, existem muitas frases prontas, enlatados ideológicos, que tornam real aquilo que nunca paramos para pensar, segundo algum tipo de metodologia empírica científica, para verificar se as supostas frases estão realmente conectadas com o mundo real.

Há um paralelo tenebroso; no Brasil, a polarização política utiliza-se do mesmo método. Todos nós já ouvimos frases como “bandido bom é bandido morto”, “direitos humanos para quem é humano”, esses são exemplos de frases prontas que substituem o pensamento, os clichês que Arendt nos alertou de que os estados usariam para produzir o tipo de pessoa necessário aos seus projetos, de direita e esquerda.


Arendt nos escreveu sobre hoje, certamente. Seu pensamento e sua preocupação estão presentes no que temos visto: uma sociedade que abre mão da ideia e discute em termos de clichês. A igreja, ao emprestar seu lastro de moralidade e princípios evangélicos, tornou-se importante massa de manobra. Se de um lado o voto justifica-se ao dizer “para que não sejamos uma Venezuela”, por outro, diz-se “abaixo o fascismo”, contudo, questionáveis são os dois, pois não há correspondência entre os fatos e o discurso – é uma guerra da linguagem, uma política em tempos de propaganda.



Aqueles que não querem a pobreza da Venezuela defendem uma visão econômica que claramente pretende extinguir o acesso universal a educação e a saúde públicas, bem como o descompromisso com políticas sociais de combate a fome. Do outro lado, os que alertam contra o fascismo, os que se qualificam como defensores da democracia, alimentam admiração e amizade com nações que desafiam a ordem democrática – a contradição é a palavra de ordem nos dois casos.


Pensando na igreja, questionamos: Porque nos enfiamos nessa loucura? Respondendo (inquieto): porque ser cristão, cada vez mais, é não mais pensar – triste conclusão. Definitiva? Não, talvez.


Claro é que há um descolamento da igreja de sua tradição, afinal, tradição é uma palavra que não é bem-vinda na grande massa do evangelicalismo contemporâneo.

Mais uma contradição: se o “conservadorismo cristão” - em aspas porque ser conservador e cristão já é uma contradição -, arroga uma pauta moral apoiada numa suposta tradição judaico-cristã, por outro lado, ignora sua verdadeira tradição de ser uma religião da inteligência.


A verdadeira tradição cristã, a tradição dos pais da igreja, é muito mais do que ser uma religião do “pode ou não pode” (procure na internet as redes sociais das grandes personalidades crentes de nossos dias, eles passam todo seu tempo respondendo aos fiéis o que pode ou não pode; isso é uma triste redução da compreensão do que é ser cristão hoje).


Ser cristão hoje é quase sinônimo de ser gente de um moralismo chato e tacanho, reacionário e que se retroalimenta por um medo sei lá do quê; medo esse que surgiu, em grande medida, nos 70/80 como parte da política anticomunista americana e que patrocinou os famosos tele-evangelistas de lá.


Contudo, a fé cristã verdadeira é a fé de um novo pensar, como bem disse o grande doutor da igreja e papa dos irmãos católicos, Bento XVI, em seu discurso para Universidade de Sorbornne em Paris, no dia 27 de novembro de 1999, intitulado como Cristianismo: a vitória da inteligência sobre o mundo das religiões. Não é por outro motivo que era comum, no primeiro e segundo século, que os filósofos se convertessem ao cristianismo, por enxergarem no cristianismo resposta definitiva em sua busca de sentido no mundo, seja em questões como a morte, o sofrimento e tantos outros. A patrística, documento produzido pelos pais da igreja, é um material importante que coloca o cristianismo como religião das grandes questões, do pensamento e não do mito.


Ao olhar as Escrituras Sagradas, alguns comentaristas assumem que o apóstolo João, no seu evangelho, ao desenvolver a cristologia de Jesus, se apropria do logus dos gregos para propor que Jesus era a lógica que dava sentido à existência e a criação. Em Jesus, o mundo tem uma ordem e sentido, uma lógica, que tudo governa. Para entender o conceito trabalhado por João, precisa ficar claro o que representava para os gregos a palavra logus.


Para os gregos, o logus representava um princípio cósmico de ordem e beleza – há uma razão que tudo cria, governa e dá sentido em toda criação. Ao tomar emprestado o logus grego, João deixa claro que a fé cristã é uma fé do sentido, da inteligência e da lógica, pois Deus pensa o mundo e pensando o mundo estabelece seu domínio.


Craig Keener, em seu livro A Mente do Espírito, faz um estudo sistemático do capítulo 12 de Romanos, onde defende que a mensagem do apóstolo Paulo aos crentes de Roma era que a verdadeira fé cristã era um chamado a nova maneira de pensar, essa era essência da nova ideia de culto que permearia todo o Novo Testamento. Isso fica nítido no apelo apostólico para a metanóia (v. 2) - a mudança de mente.


O culto da religião do Nazareno era uma fé racional, pois o crente, nascido de novo na experiência mística de encontro com Jesus, recebia agora a própria “mente de Cristo” (1Co 2.16), a ponto de que tudo que fizesse a partir desse nova maneira de pensar seria um culto, uma adoração.

Se eu trabalho honestamente porque tenho uma nova mente, meu trabalho é um culto que adora a Deus. A mente de Deus está acessível a todos que nasceram de novo, participamos dela, assim, não nos importa mais a lei como regra exterior, mas a lei eterna, o espírito da lei, a intenção de Deus para tudo que diz respeito à existência humana e o mundo e que está dentro de nós pelo Espírito de Deus. Para o filósofo convertido, isso era a resposta daquilo que buscavam como “a boa vida”, o ideal pelo qual procuravam, a resposta para o que seria justiça, beleza, amor e outras questões humanas e filosóficas.


A fé cristã é uma fé de uma nova mentalidade.

Não queremos com isso anular a tradição litúrgica cristã e os seus ritos. Uma leitura de Desejando o Reino, de James K. A. Smith, nos mostrará a importância da liturgia em seus ritos para a construção de uma espiritualidade saudável. Contudo, essencialmente, o cristianismo não é uma religião de ritos, mas do pensamento. Assim, nada é mais contraditório em nossos dias do que ver uma igreja que abre mão do pensamento a fim de ser massa de manobra pela guerra do poder, seja de um lado ou de outro. Um dos perigos é que, historicamente, a igreja já tomou posições erradas. Isso tende a testemunhar contra a igreja à medida que o tempo passa; com isso colhemos a desconfiança de várias etnias porque, no passado, já fomos a encarnação do mal banal, quando abrimos mão de pensarmos a fé no mundo.


Esquerda e direita são filhos do mesmo pai; os dois sonham em construir uma cidade perfeita; a versão moderna dos anseios de Ninrode (Gn 11). Todas as nações foram construídas no derramamento de sangue inocente, na exploração, roubo e violência sobre o outro.


Um cristão sempre será estrangeiro, mesmo que esteja em seu país, pois sua terra natal não é desse mundo. Um cristão é desconfiado com o nacionalismo porque sabe que, em nome do nacionalismo, foram realizadas as maiores atrocidades dos últimos trezentos anos.

Um cristão desconfia da política porque sabe que esta é o instrumento da religião do estado civil, e que tem a clara intenção de substituir o céu cristão como promessa de perfeição.


Um cristão não espera nada de nação nenhuma porque espera uma cidade que tem fundamentos, do qual artífice e construtor é Deus (Gn 11.10). Um cristão sabe que Deus, em sua justiça, não esquece o sangue derramado sobre a terra (Mt 23.35). Um cristão não é apolítico, mas pode ser mais sábio ser um ateu político, porque não coloca sua esperança na atuação política no mundo, mas na volta do Cristo e estabelecimento do seu Reino de paz, alegria e justiça.


Um cristão não nega a política, mas não faz dela sua esperança última, mas sim na parúsia (volta de Jesus Cristo).

Um cristão não reduz sua atuação no mundo tornando-se um militante político, pode fazê-lo, mas sua principal missão é apregoar as Boas Novas da salvação em Jesus Cristo.


Em última instância, um verdadeiro cristão, crê, acima de tudo, no Evangelho e isso basta.


 

Jorge Anderson Missional é militar e estudante de Filosofia. Casado com Monique, pai da Laura e do João Eduardo. Faz parte da Igreja Evangélica Congregacional de Niterói, RJ.


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