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Criar é Sagrado

Texto por: Bruno Maroni




De onde vem a criatividade? Ser humano é ser criativo, mas as fontes do criar, é fato, divergem ao longo da história. Para alguns a criatividade vem da beleza estrondosa da natureza, ou da técnica artística rigorosa.


Vem do lado de dentro ou do lado de fora. Uma tensão entre o objetivo e o subjetivo. Os românticos do século XIX confiavam que criatividade vinha dos mais viscerais sentidos, os beatniks dos anos 50 acreditavam que a criatividade vinha da desordem, da loucura, enquanto os hipppies tinham fé na alucinação. De certa forma, a história da arte é a história das diferentes fontes de criatividade.


Pra você, de onde vem a criatividade? Talvez você não seja um audacioso músico ou primoroso artista plástico, mas o que te move quando cria sua mesa para um prosaico café da manhã ou maçante relatório de trabalho? A Bíblia, em si mesma uma obra criativa singular, em poucas linhas introduz de onde vem a criatividade. Diz ela que a criatividade é sagrada - ressoa a identidade divina. “Todo fruto do trabalho é mais que sagrado, meu amor”, cantou Beto Guedes. É isso. Vinda do mundo de dentro ou de fora, a criatividade é resposta ao Criador que cria por amor. Ele cria ex nihilo (do nada) e ex amor (do amor).


Criamos a partir da imaginação - pães com manteiga ou sonetos refinados -, ou seja, à luz da imagem que temos do mundo. Isso muda tudo.


Este mundo é uma máquina?


Fato é que hoje (quer dizer, há séculos, graças ao desejo por progresso) vemos o mundo mais como máquina do que como arte, mais como coisa do que como dádiva, como fábrica do que ateliê. Uma linha de montagem para processar e não um jardim para cultivar e guardar.


A criação tem mais a ver com uma poesia amorosa do que com uma máquina ruidosa e eficiente.

O mundo foi criado para funcionar harmoniosamente, mas não é uma linha de montagem. Não que a gente tenha que voltar a uma paisagem campestre, mas reajustar o olhar: perceber o mundo como poesia divina, discurso trinitário pessoal e intencional.


A pressão por resultados e a agenda corrida costuma inverter nosso senso do que realmente importa. Na cultura utilitária pensamos que a beleza não importa. Pense bem, honestamente, na correria do seu dia a dia, qual é a primeira coisa que fica de fora da rotina? Possivelmente o que diz respeito à arte, criatividade e beleza. Reimaginar o trabalho criativo é trazer o que é belo de volta para a casa. Para isso precisamos de uma saudável teologia do criar inspirada na bela narrativa da criação.


Um amor criativo antes de todas as coisas


Por que Deus criou e continua criando? Afinal, dizer que as misericórdias dele se renovam é afirmar que a cada manhã Ele cria novas possibilidades de vida. Mas por que Ele cria? Em Deus não há escassez e nem necessidade. Então, Ele não cria porque precisa de algo ou de alguém: sua criatividade é de graça generosa. Ele cria para traduzir em cores, sons, formas, movimentos, acordes, texturas e afins, um amor que “já estava lá”. O amor do Criador é abundante, exuberante, transbordante e extático - que não se guarda, mas se entrega.


“A Criação de Deus é um exercício gratuito de amor” Makoto Fujimura

Deus não deriva sua glória de nada que criou, mas exibe sua glória a toda a criação. O que há de bonito no mundo - as belezas ordinárias e extraordinárias, do por do Sol alaranjado ao cheiro dos grãos de café - foi pensado pela Trindade. Joe Rigney, no excelente As Coisas da Terra, que fala sobre desfrutarmos da glória de Deus nos deleitando que em suas obras, diz o seguinte:


Deus é amor dinâmico, vivo, profuso e transbordante. Relacionamento está no coração da realidade. A Palavra original deste Deus é Deus de novo. Seu amor por si mesmo é tão potente que é uma pessoa. […] É um tornado troante de conhecimento, e amor, e alegria, e vida. E o Pai, o Filho e o Espírito Santo amam tanto a plenitude de sua vida compartilhada que consideram adequado e correto que esse conhecimento, esse amor e essa alegria gloriosos transbordem. Assim, criam o mundo para contê-la. Criam recipientes para receber a plenitude de sua alegria divina.” - Joe Rigney (p. 49)


De onde vem a criatividade? Do amor que vem antes de tudo, partilhado em eterna e plena alegria pelo Pai, Filho e Espírito.

A Trindade é o oxigênio para a criatividade. Na criação - nas fatias do seu pão e no irradiar do Sol - a Trindade exibe suas perfeições e nos convida a respondê-las em amor. A humanidade é um ato de amor criativo e gratuito de Deus. Desde a criação original fomos chamados a cocriar em amor (rumo à Nova Criação, Romanos 8:16).


Isso é uma boa nova! Jesus, além de perdoar nossos pecados, limpar nossas almas e nos fazer justos diante de Deus, liberta nossa criatividade atrofiada. Quando não criamos, nossa humanidade é drenada pelo mercado. Mas ao nos restaurar por inteiro, Cristo limpa, como diz Makoto Fujimura, nosso rio cultural poluído. Nossa criatividade está quebrada, mas os empreendimentos criativos não escapam à abrangente obra de reconciliação de todas as coisas em Cristo.




Amar, criar e cuidar


Você pretende fazer arte significativa e cuidar da cultura com relevância? Quer superar as guerras culturais infrutíferas? Ame o Criador radicalmente. Você deseja amar mais a Deus, cultivar uma espiritualidade profunda? Quer mais intimidade com Cristo? Crie amorosamente. Amar a Deus com tudo de nós mesmos - com todo o nosso coração, alma, entendimento e força (Dt 6.4, Mt 22.37-40) - envolve também amá-lo imaginativa e criativamente.


A vocação das Escrituras para nós, co-regentes da criação (Gn 1), é que nós criemos no amor, pelo amor e por causa do amor. Ou seja: o amor é o solo adequado para a criatividade, é a condição necessária para a criatividade e é o motivo original da criatividade. Cocriar no amor, pelo amor e por causa do amor, significa aceitar a dádiva-convite para a jornada de multiplicar as expressões criativas de amor: fazer arte que toque o coração, refine as emoções, desafie o entendimento e sirva ao bem comum.


A arte explora e amplia as possibilidades do mandamento do amor.

Qual tem sido a nossa contribuição amorosa para a cultura? Que diferença o amor criativo auto doador faria para a nossa cultura hostil, polarizada e utilitária? O trabalho artístico criativo colabora para uma linguagem mais integrada, resiste ao colapso da comunicação e nos ajuda a ver e amar além das tribos.


Tudo muda quando reconhecemos a origem do ofício criativo. Nos bastidores de toda boa ideia, da arte bela e útil, da criatividade que contribui para o florescer, está o amor eterno da Trindade.


 

Bruno Maroni é pastor, teólogo, professor, revisor de texto e co-criador do perfil Ouvido Pensante, sobre música e espiritualidade. Casado com Larissa, faz parte da ComViver Igreja Batista, em Jundiaí, SP.




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