Texto por: Bruno Maroni | Fotografia: Tara Winstead
Estilhaços cor-de-rosa
Estética colorida, figurino pink, canções pop e a ironia irreverente de Barbie não são capazes de esconder sua sutil melancolia. Em dado momento da trama, nada discreta — Billie Eilish que o diga.
Mesmo sendo um hit do cinema e da cultura pop contemporânea, Barbie não é uma obra-prima irretocável. E nem se propõe a ser. Apesar disso, é uma história repleta de insights, com uma imagem perspicaz da nossa cultura — seus anseios, conflitos, questões e esperanças.
Barbie não é um retrato límpido da humanidade, mas seus estilhaços dizem muito sobre quem somos, deveríamos ser — e jamais seremos. Não por nós mesmos.
Se você já assistiu o filme, relembre a trama e tente responder à pergunta: "O que Barbie e as demais personagens querem?". Caso ainda não tenha assistido, vá pronto para questionar.
Eu sei, o longa soa pertinente pela série de protestos que elenca contra um jeito desumano de se viver em sociedade. Critica, com certo charme (e também excesso), o "patriarcado". Toca, em cena após cena, no conflito de ismos que reduzem homens e mulheres — e é incapaz de redimir o coração. Isso acontece com diversos artefatos culturais. Eles levantam perguntas e denunciam problemas, mas são incapazes de respondê-las e solucioná-los.
Porque embora a cultura popular seja uma expressão do nosso coração, não é a cura para ele.
O peso da performance
No entanto, a meu ver, a maior aflição que Barbie expõe tão bem, não é a da desigualdade, injustiça, desarmonia. Mais que isso, é esta: a dor da performance.
A angústia de ser quem se é dependendo do papel que assume.
Acho que me esqueci de como ser feliz / Algo que não sou, mas que posso ser / Algo pelo qual espero / Algo para o qual fui criada / Algo para o qual fui criada
— Billie Eilish, What Was I Made For?
Na falta de saber quem somos, tentamos sustentar micro performances cotidianas para convencer o outro (e nós mesmos) de que somos alguém — de que somos dignos de aprovação, reconhecimento, amor. De que somos úteis, valiosos de certa forma. Acontece que nessa maratona performática, não nos resta muito mais que uma vida de plástico.
Sim, você tem muitos papéis. Todos nós temos. Mas o que em você não muda o tempo inteiro? Quem é você em todos os cenários que atua? Identidade é isto: um eu constante e duradouro, resistente aos papéis transitórios que a cultura propõe e impõe.
Eu quero fazer parte das pessoas que fazem sentido, não da coisa que é feita.
— Barbie
Junte os seus perfis, pedaços de papéis e você provavelmente terá um notável eu de plástico. Reconhecido, bem aceito, produtivo, esteticamente agradável, satisfeito e de identidade facilmente desmontável. Sem propósito, sentido, humanidade. Uma versão nada glamourosa — e cor-de-rosa — de uma corrida existencial exaustiva.
Faz sentido ressoar o lamento de Barbie, mas é arriscado comprar toda a sua promessa. Aliás, uma frágil promessa: descobrir um eu constante no mesmo eu transitório. Calma. Tire os jogos de palavras e frases torcidas e reduza ao dito popular: ser você mesmo. Pois é. A autodescoberta (e auto expressão) é um dos principais combustíveis das narrativas culturais contemporâneas.
O descanso do Evangelho
Histórias dizem e fazem coisas. Fazem promessas inclusive. Mas esta pode ser dolorosamente frustrante. Entre múltiplas pressões que tentam definir quem somos, "seguir seu coração" e "seguir sua verdade" podem até parecer um alívio, mas é só mais um desgaste. Sem choro, sem cheiro, sem crise. Sem sentido, conflito e beleza. Sem graça.
Não, você não pode ser quem quiser. A título de exemplo: tente convencer seu corpo finito disto e você certamente se decepcionará com seus próprios limites. Nem a mais extravagante autenticidade nos salva disso.
Porém, e se a verdade sobre quem somos não vier de dentro de nós, mas de fora? E se a nossa identidade, da alma à carne, for dada e dádiva, e não performance conquistada?
Este é o ponto em que o drama singular do Evangelho, o enredo da redenção, promete — e cumpre — uma nova identidade. Quem somos? Somos amados. Não somos o que performamos: somos fruto do que Cristo performou na cruz: filhos adotados (Gl 3.26-4.7), servos, amigos (Jo 15).
Andar com Deus, que sempre nos enxerga e ama, traz uma nova integridade e senso de identidade.
[...] Não somos um mero conjunto de papéis dramáticos, como se mudássemos toda vez que atuamos para um novo conjunto de espectadores, pois Deus é nossa audiência principal a todo instante.
— Timothy Keller
Pense em seus papéis. Arranque-os e talvez você perca a si mesmo. Agora, olhe-se à luz das boas novas. Rasgue os seus rótulos, embrulhos e invólucros, ideologias e categorias: em Cristo, você não deixará de ser amado. Nossa identidade está segura, escondida nele (Cl 3:1-3).
Ser você mesmo — o peso da performance — pode ser esmagador. Mas ser quem Deus diz que somos, isso sim é dádiva e descanso.
Bruno Maroni é discípulo, pastor-teólogo, autor, redator, professor e ouvinte da cultura. Casado com Larissa, faz parte da ComViver Igreja Batista, em Jundiaí, SP.
Comments