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Enraizados na Verdade

Texto por: Lucas Gonçalves | Fotografia: Tom Swinnen




Eu botei fogo no quintal da minha avó quando era criança. Eu e um primo. Éramos crianças, estávamos à toa, tinha um monte de coisa que dava pra queimar lá e pensamos: “por que não?”.


Quando as nossas mães viram a carvoaria em que transformamos o quintal, vieram como mísseis teleguiados, travados em nossa direção: “o que foi que vocês fizeram?!”. Meu primo, mais esperto do que eu, respondeu: “Nada, não fizemos nada! A gente tá quieto”. Eu, inocente e desligado, disse: “queimamos algumas coisas no quintal, por quê?”. Bom, o resto da história é o previsível: castigos, broncas e afins...


Veja, meu primo mentiu porque ele sabia que a verdade, como de fato aconteceu, nos traria castigos e privações. Quem gostaria ou desejaria a verdade em um caso desses? Ninguém. Ocultar os fatos, nesse caso, seria bem mais vantajoso. Ganharíamos muito mais, ou perderíamos muito menos, se a verdade não fosse revelada e se não tivéssemos que lidar com ela.


Vamos ser sinceros? Nós também não gostamos da verdade. Nós queremos que a realidade seja um quintal totalmente disponível para fazermos as fogueiras que desejarmos, sem qualquer senso de responsabilidade a nos limitar.


Todavia, contrariando o nosso egocentrismo iludido, a Verdade é um grande objeto maciço no meio deste “quintal-de-realidade”, nos obrigando a uma adaptação a ele, nos pressionando contra a encosta da humildade.


A Verdade nos atrapalha de vivermos a vida como desejamos vivê-la, e isso nos incomoda.

Na sua segunda carta, o apóstolo João trabalha esse tema e nos mostra que a Verdade, ainda que a tratemos como uma inimiga, é um grande presente de Deus, um solo fértil onde nós podemos viver e frutificar o amor.


Na saudação da carta conseguimos entender três benefícios que ganhamos ao abraçarmos a Verdade como uma velha amiga: "O presbítero à senhora eleita e aos seus filhos, a quem eu amo na verdade e não somente eu, mas também todos os que conhecem a verdade, por causa da verdade que permanece em nós e conosco estará para sempre, a graça, a misericórdia e a paz, da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo, o Filho do Pai, serão conosco em verdade e amor" (2João 1.1-3 - ARA).


A Verdade é o solo fértil onde a vida cristã se desenvolve de forma saudável.


1. A VERDADE NOS DÁ MISSÃO


A Verdade é uma descrição da realidade e ela funciona como um mapa que nos direciona pela vida. Quando negamos a Verdade, perdemos contato com a realidade e não sabemos mais como caminhar. Um dos efeitos diretos disso, e nós podemos vê-lo claramente em nossos tempos, é a carência que muitas pessoas sentem de um norte, de um propósito de vida. É a ausência de uma missão pela qual se dedicar.


Por causa da Verdade, amar a Igreja nos garante uma missão ao menos de duas formas. Em primeiro lugar, porque “a senhora eleita e seus filhos”, é a família de Deus que coparticipa de sua missão redentiva desde Sete, passando por Noé, Abraão, Moisés e Davi, até chegarmos em Jesus Cristo, que cumpre as promessas, inaugura antecipadamente o futuro perfeito que Deus está construindo e capacita o seu povo, formado por judeus e agora também por pessoas de todos os outros povos, nações e raças, a vivê-lo e manifestá-lo neste mundo marcado por trevas.


Amar a Igreja é valorizar e celebrar as ações práticas de Deus em conduzir a História ao seu desfecho perfeito originalmente pretendido para toda a sua Criação.


Em segundo lugar, amar a Igreja nos garante uma missão justamente porque a missão da Igreja é amar com o amor divino. Esta Verdade é especialmente presente em João e nos seus incontáveis: “amem-se uns aos outros”. Devemos nos lembrar com atenção das palavras de Cristo em João 13.35 (NVI): "Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros".


Nós glorificamos a Deus quando ecoamos a sua glória. A glória de Deus é aquela sua característica especial, que o distingue de todo o resto e o caracteriza como superior a tudo. Não erraríamos se disséssemos que Deus é distinto das demais coisas por ser o Criador e o Governador de tudo. Porém, isso seria incompleto. Deus não era glorioso antes de ter criado um mundo para governá-lo? Evidentemente Ele era, já que a Bíblia nos ensina que Deus é imutável — sua glória presente não é maior ou menor do que a sua glória passada ou futura; ele é Deus.


João nos ensina que Deus é distinto, desde toda eternidade e para toda a eternidade, por ser Amor. Deus não tem amor, ele não sente amor: Deus é amor. O amor jorra dele e se espalha pela Criação. Por toda a eternidade, Pai, Filho e Espírito Santo se doam um pelos outros em um intenso amor generoso, compromissado e comemorado. Lembrem-se de que, em João 17.3, Jesus nos ensina que a Vida Eterna é justamente uma vida de relacionamento.


Uma vez que esse amor real é a glória de Deus, nós, que fomos criados segundo a sua imagem e semelhança, além de sermos regenerados pelo seu Espírito da Verdade, glorificamos o Senhor ao refletirmos essa glória de Deus. Sendo bastante direto, glorificamos a Deus quando amamos com o amor de Deus, e esse amor é a característica básica daqueles que foram afetados pela Verdade, dos filhos da senhora eleita — a igreja.


Sendo o povo de Deus, sendo essa família que vive o futuro já no presente, você consegue imaginar os efeitos de refletirmos a vida do amor divino em meio às pessoas, marcadas pelas trevas do egoísmo mortal?


John Stott compartilha em “Como ser Cristão?” sobre a fala de uma antropóloga cultural, em relação à unidade na diversidade da Igreja: “vocês são uma impossibilidade sociológica”. Realmente somos, pois somos o povo que orbita a Verdade e vive o amor que recebemos do alto.

Vamos trazer isso para mais perto? Quantas pessoas cruzam diariamente as nossas vidas, conhecidas e desconhecidas, carentes do amor, mas alheios a ele; atrofiadas pela falta daquilo que nos sobra? Quantos conhecidos nossos nem imaginam que aquilo que necessitam existe e está disponível? A Verdade veio a nós e nos capacitou a amar. Lembre-se de que você não era alguém amável — e, provavelmente, ainda não é —, mas você foi amado mesmo sem merecer. Agora, como cristãos, como pequenos-cristos, como discípulos de Jesus, que esse amor transborde e nos conduza a amar a todos os que Deus colocou em nossos cotidianos.


Sinceramente, eu não consigo imaginar um propósito mais digno e valioso para o qual poderíamos dedicar as nossas vidas. Entretanto, a Verdade não apenas nos dá uma missão. Se essa Verdade fosse passageira como uma neblina, ou se ela mudasse com o momento, em pouco tempo o nosso propósito de vida se esvaneceria e voltaríamos a vagar sem rumo. A Verdade além de nos dar missão, também nos dá certeza.


2. A VERDADE NOS DÁ CERTEZA


Vivemos em um contexto efêmero, onde tudo é passageiro, tudo é mutável. Isso não se dá apenas pela natureza das coisas, mas também por uma inclinação que temos pela novidade. Num contexto assim, como poderíamos construir as nossas vidas, sendo este um projeto que leva justamente toda uma vida? Como trilharemos por um caminho sem sabermos onde poderemos assentar os nossos pés no próximo passo?


A Verdade que nos confere uma missão não é mutável. Ela é permanente, ela é eterna.

Ela permanece conosco e nos garante a possibilidade de vivermos com a certeza de que todas as manhãs ela se renovará em nossas vidas e nos guiará no decorrer de mais um dia, até chegarmos no destino final — ou deveria dizer “inicial”? — de nossas almas.


Pessoalmente, nunca lidei bem com o contingente, com o mutável. Para ser bem sincero, desde criança sempre desenvolvi manifestações psicossomáticas para qualquer variação de ambiente, de relacionamentos. Eu sempre tive muito medo de ficar sozinho, de ser largado em um contexto hostil e abandonado para sofrer.


Deus poderia me confrontar à maturidade e ao abandono desses pensamentos infantis: “seja homem!”. Curiosamente, para mim e para qualquer um que se identifique minimamente com essa luta, Deus nos consola: “A Verdade nas suas vidas é imutável. Céus e Terras podem passar, mas a minha Palavra jamais passará. Quando vocês passarem pelo Vale de Sombra e de Morte, eu estarei lá com vocês. Na Verdade, estou e estarei com vocês em todo o tempo, até o fim da jornada, até eu entregar a vocês a Coroa da Vida!”.


A Verdade que nos capacita a amar e a participar da missão de Deus é uma Verdade permanente. Apesar de nós mesmos e apesar dos nossos contextos, ambos ainda marcados pelo pecado, ambos ainda aguardando a consumação do Reino Futuro, nós podemos amar e podemos caminhar confiantes, pois a Verdade é constante.


3. A VERDADE NOS DÁ VIDA


Uma vez que a Verdade é permanente, os benefícios de Deus também são um fato constante. Sempre haverá sobre nós a graça, a misericórdia e a paz. Em outras palavras, essa Verdade nos dá vida plena.


Ele fala primeiramente sobre a graça. Tim Keller nos explica que a graça não é apenas um presente gratuito que recebemos de Deus. Keller nos oferece uma ilustração que ajuda a entender melhor a questão. Se ganhássemos o tablet mais caro, da melhor marca, provavelmente nos alegraríamos. Todavia, isso não seria graça. Além do tablet não ser vital, com trabalho, planejamento financeiro etc. é possível comprá-lo.


Entretanto, se você fosse um pobre doente de um país de terceiro-mundo extremamente necessitado de uma cirurgia inacessível, e fosse presenteado por alguém rico com o tratamento do qual você carece, então você seria um alvo da graça.


Graça não é apenas um presente gratuito. Graça é receber algo vital e impossível de se alcançar.

É justamente isso o que a Verdade nos garante: fomos criados graciosamente, somos sustentados graciosamente, somos salvos graciosamente e temos esperança graciosamente. Tudo isso é vital e nada disso nós podemos conquistar.


Você sabe das suas limitações e você sabe o quão triste é o seu presente e o seu futuro, caso eles dependam de você. Mas a boa notícia é que, por causa da Verdade, há graça sobre nós; por causa da Verdade, recebemos um presente vital e inatingível.

A Verdade não apenas nos proporciona graça, ela também nos garante a ternura do bom Pai, o Deus Soberano que possui o controle de cada microscópica parte da realidade, em meio às nossas tempestades. Olhe à sua volta, olhe pela janela ou pela tela do celular e veja o caos trazendo medo, dor e desespero a todo o mundo. Porém, observe além do que os olhos podem ver e contemple a Verdade trazendo a bondade de Deus sobre você.


Por fim, no texto de 2 João, o apóstolo enumera a paz. Nós precisamos entender isso dentro do contexto bíblico. Tratamos a “paz” segundo o pensamento grego, que se contentava simplesmente com a ausência de conflito. Todavia, “paz” na cosmovisão bíblica é o Shalom, é o equilíbrio e a harmonia entre as relações que sustentam o bem estar generalizado. Porque a Verdade traz graça e misericórdia, nós temos a garantia de paz com Deus, com o próximo e com a criação.

O QUE É ESSA VERDADE?


A graça, a misericórdia e a paz, que são produtos da Verdade Amorosa, Constante e Generosa, fluem do Deus Pai e do Deus Filho. Essa é a Verdade para João, oposta À falsidade das mentiras contadas sobre Jesus, conforme o resto de sua segunda carta nos diz: Cristo é o bom Deus encarnado.


Isso fica claro em seu Evangelho, quando João diz que as testemunhas de Jesus viram a glória do unigênito do Pai, assim como em sua primeira carta, onde lemos que eles testemunharam sobre o Deus que viram e tocaram.


Se a Verdade é a descrição da realidade, Jesus Cristo é a maior Verdade de todas, pois Ele é a imagem exata do Pai, de modo que quem o vê, vê a Deus.

Eu sei que queremos a realidade como nossa escrava, como nosso quintal pronto para ser queimado segundo a nossa vontade e sem qualquer consequência. Eu sei que a Verdade nos incomoda, pois ela nos exige uma postura diferente daquela que planejamos em nossos corações. Mas, permita-me dizer: ao invés de queimar a realidade, como eu queimei o quintal da minha vó, que você, seu orgulho, sua autonomia e sua auto- justificação sejam queimados pela Verdade.


Que dessas suas cinzas, Cristo, a Verdade, te faça nascer de novo, maior e melhor, capacitado a amar, confiante em Deus e experimentando da vida verdadeira, que tanto queremos, mas nunca encontramos por nós mesmos.



 

Lucas Gonçalves é formado em teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Casado com Bia, é seminarista na Igreja Presbiteriana em Paulínia, SP.

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